sábado, 9 de junho de 2007

A modernidade brasileira e a mão experimentada do estrangeiro

O Brasil aspira à modernidade. Desde a independência política, em 1822, quando foram lançadas as bases para a formação do Estado brasileiro, afirmar-se, no cenário internacional, como país moderno e soberano constitui um projeto permanente. Não foi por acaso que, ao longo do Império e mesmo da República, as instituições políticas nacionais conformaram-se com base nos valores e princípios do liberalismo ocidental. Vivemos hoje sob regime democrático e republicano. É verdade, contudo, que a formação social brasileira foi marcada pelo descompasso entre o sistema político-jurídico e as práticas sociais, como se as idéias estivessem, por assim dizer, "fora do lugar". Em face dessa incongruência, o diálogo maduro com o estrangeiro portador de experiência cultural diferente representa esforço capaz de conduzir à tomada de consciência dos obstáculos à modernização do País.
"Somos um outro Ocidente, mais pobre, mais problemático, mas não menos ocidente", afirmou certa vez José G. Merquior, assinalando a condição ambígua e incompleta da nossa sociedade, herdeira das instituições da modernidade, não obstante dominada pelo atraso. No que se refere à cultura política, pode-se dizer que, no Brasil, as relações entre o Estado e os indivíduos foram historicamente marcadas pela ausência de limites claros entre o espaço público e o privado. Trata-se de fenômeno social que remete aos fundamentos personalistas da formação nacional: o patrimonialismo. Em Raízes do Brasil, Sérgio B. Holanda afirma que a cultura política patrimonial decorre do tipo de sociedade legado pela colonização portuguesa: uma sociedade calcada em estrutura extremamente estratificada, formada basicamente por senhores, escravos e homens livres pobres. Nesse quadro social, em vez de representar a sociedade, o Estado acabou por se tornar uma espécie de extensão pública dos interesses privados da família patriarcal, regulado por relações sociais paternalistas baseadas no favor e na dependência.
Em excerto de A casa e a Rua, intitulado a "A questão da cidadania num universo relacional", Roberto DaMatta enfatiza a especificidade da noção de cidadania no Brasil, regida por privilégios e favores. Ao invés de assumir caráter universal e nivelador, baseado na concepção liberal de igualdade, a cidadania brasileira engendra práticas sociais que legitimam a desigualdade e promovem o tratamento diferenciado entre os indivíduos. Não existe entre nós, desse modo, o cidadão como sujeito de direitos e deveres, mas apenas o indivíduo como objeto de favores. Disso resulta a carência de credibilidade nas instituições políticas, condição indispensável para a formação de uma ordem pública moderna e democrática.
Diante da incoerência entre o sistema político vigente -- e suas idéias subjacentes – e a realidade socioeconômica, o olhar incomodado e a experiência do estrangeiro portador de cultura diversa podem contribuir, em certa medida, para a superação das acomodações políticas e sociais do País. Dois momentos históricos significativos em que o intercâmbio cultural com outras nações ajudou no desenvolvimento nacional foram a missão artística francesa, durante o Reinado de D. João VI, e a imigração de italianos e eslavos, na virada do século XX. Enquanto os artistas franceses, como J. B. Debret e Grandjean de Montigny, propiciaram o surgimento de uma tradição de artes plásticas e de arquitetura no Brasil; os trabalhadores italianos, provenientes de país com forte tradição sindicalista, e os eslavos, portadores de experiência industrial, favoreceram o processo de modernização da economia brasileira.
Apesar disso, em tempos de mundialização vertigionosa, os contatos culturais cada vez mais intensos entre as nações, proporcionados pelas novas tecnologias da informação e pelos meios de transporte, tem despertado, especialmente nos países desenvolvidos, sentimentos xenófobos em relação à influência do estrangeiro sobre a identidade nacional. Ora, não há motivos para temer o intercâmbio cultural: cada país tem condições de manter sua individualidade; pelo contraste que proporciona, o contato com países de tradições e costumes diferentes acaba por estimular a consciência nacional. Por meio dele, as contradições e antagonismo da sociedade são acentuados, contribuindo para sua resolução.
A abertura ao mundo, antes que evitada, deve ser encorajada. Em meados dos anos 1930, Sérgio Buarque propugnava como a "nossa revolução" a superação, lenta porém inexorável, da ordem colonial e patriarcal por meio da construção de uma sociedade urbana e industrial. Ainda hoje, esse projeto continua em aberto. Nesse sentido, a mão experimentada e a experiência acumulado do estrangeiro pode nos ajudar a alcançar a modernidade a que sempre aspiramos.

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