sábado, 9 de junho de 2007

Democracia e República: convergências e contradições


Regimes políticos, assim como formas de governo, compreendem dimensões fundamentais do Estado-nação. Deles dependem, em larga medida, a convivência política e o bem-estar da sociedade como um todo. Ao longo da história, os sistemas políticos por meio dos quais as sociedades se organizaram assumiram várias formas, entre as quais se destacam a monarquia, a oligarquia e o despotismo. No mundo contemporâneo, a democracia e a república, ambas invenções da civilização greco-romana da Antiguidade, ocupam lugar de destaque no ideário político ocidental, a tal ponto que a legitimidade dos governos atuais costuma ser avaliada por sua identificação ou não com os princípios democráticos e republicanos. Embora freqüentemente caminhem lado a lado, como se uma dependesse da outra, deve-se assinalar que a democracia e a república encerram idéias e valores políticos diferentes, por vezes contraditórios.

Em A Era das Revoluções, Eric Hobsbawn afirma que a formação do universo político contemporâneo foi inaugurada pela Era das Luzes, quando as idéias de liberdade e igualdade, esposadas pelos filósofos iluministas, triunfaram sobre os princípios que moldaram as instituições do Antigo Regime. Após a queda da Bastilha, em 1789, sob a inspiração das noções de “soberania popular” e de “vontade geral”, ambas divulgadas pela obra de J. J. Rousseau, o povo entraria no palco político, exigindo participação efetiva nos assuntos públicos. Ao mesmo tempo, os privilégios estamentais eram abolidos, e o autoritarismo monárquico abria espaço para a cidadania e a democracia. O desejo do povo francês de mudanças sociais profundas, traduzido no decorrer do processo revolucionário pelo radicalismo dos jacobinos, causou enorme impressão na elite européia do século XIX. Tanto mais que, nos países ocidentais, a democracia representativa, versão moderna da democracia direta dos antigos, acabaria por prevalecer como regime político apenas na segunda metade do século XX. Temia-se a atuação política do povo.

Em 1776, após longa luta por independência, os Estados Unidos consagram, em sua Constituição, o ideário republicano, enraizado na experiência romana da Antiguidade. Menos de vinte anos depois, em 1792, os revolucionários franceses substituiriam o regime monárquico pelo republicano. Da mesma forma, os valores do Antigo regime, representados pelo sentimento de honra da nobreza, cediam lugar à virtude republicana, como ética política fundamental. J. Louis David, pintor oficial de Napoleão, talvez tenha sido quem melhor exprimiu os valores republicanos por meio de sua pintura neoclássica: quadros como “O Juramento dos Horácios” e “Os Lictores devolvendo a Brutus os corpos dos seus filhos” enfatizam a tradição romana de sacrifício dos interesses particulares – e dos sentimentos afetivos --em benefício da res publica, do bem comum. Nesse sentido, ser republicano implica um sentimento íntimo de dever para com a coisa pública.

Enquanto a democracia traz consigo o desejo de exercício do poder e, acima de tudo, a aspiração popular de mudança social, a República afirma a virtude, a devoção do indivíduo pelo bem comum. Ambos os regimes parecem refletir disposições diferentes, ou mesmo contraditórias, de participação política: “o desejo de ter mais” e a abnegação. É significativo que o exercício pleno da cidadania, pressuposto da democracia e dever republicano, decorre da ponderação dessas disposições contraditórias. Se, por um lado, “o desejo de ter mais” impulsiona a luta social no sentido de ampliação dos direitos humanos, mitigando, como conseqüência, as disparidades socioeconômicas, por outro, a abnegação leva à consciência de que a participação política e o respeito pela coisa pública constituem deveres permanentes.

A experiência política brasileira não foi capaz de desenvolver uma nação democrática e republicana. Pode-se dizer que a cidadania no Brasil é incompleta e restrita. Mais do que isso: ela é exercida no interior de um sistema político dual, composto por integrados e marginalizados, por cidadãos e simples eleitores. Na origem desse sistema encontram-se persistentes problemas socioeconômicos, decorrentes da concentração de renda e da herança escravocrata. À situação de marginalização social a qual é relegada parcela significativa da sociedade corresponde uma população pobre e desinformada, socialmente dependente e politicamente manipulável.

O povo assistiu “bestializado” à Proclamação da República (1889), afirmou desapontado Aristides Lobo. O jornalista republicano havia identificado o pecado original do movimento político que pôs fim à monarquia: não cabe ao povo papel de espectador na República. Ao contrário, deve ele ser protagonista dos acontecimentos políticos, atores participativos da história.

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