sábado, 30 de junho de 2007

“A vida é uma mulher do lado e seja o que Deus quiser”


Tenho simpatia por Oscar Niemeyer. É homem de convicções, dono de um senso de humor finíssimo. Ainda não vi “A vida é um sopro”, documentário sobre a vida deste gigante da arquitetura. Mas pretendo vê-lo em breve.

Faz cerca de duas semanas, li na Folha de S. Paulo uma curiosa entrevista com o Niemeyer. Chamou-me a atenção a sofisticada formulação de quem já fez cem anos. Questionado sobre o sentido da vida, o arquiteto pontificou: “A vida é uma mulher do lado e seja o que Deus quiser”. Quanta irreverência, que, aliás, perpassa toda a conversa:

Veja a entrevista: FOLHA - As coisas estão melhores do que há cem anos? OSCAR NIEMEYER - Eu tenho 60.


FOLHA - Como?

NIEMEYER - Tenho 60 anos.


FOLHA - Não são cem?

NIEMEYER - Cem é sacanagem, pô! Eu tenho 60 [risos].


FOLHA - E a América Latina...

NIEMEYER - Está melhor. A gente sente uma onda de revolta contra o Bush. Há essa vontade de luta contra o capitalismo.


FOLHA - E o fato de o Chávez não renovar a concessão da RCTV?

NIEMEYER - O Chávez está certo. Se tem um órgão lá que quer impedir a revolução que ele busca, tem que fechar. Eu concordo com o Lula: o país é dele, o problema é dele.


FOLHA - O senhor é um otimista?

NIEMEYER - É complicado. Mas a coisa sempre melhora um pouco. Lula é operário, estamos do lado dele. A gente só espera que ele evolua um pouco mais. Os jovens precisam fazer uma revolta contra o capitalismo.


FOLHA - No documentário "A Vida é um Sopro", o senhor disse que o importante na vida é mulher.

NIEMEYER - Meus amigos do "Pasquim", outro dia, me perguntaram: "Oscar, e a vida?" Eu disse: "A vida é mulher do lado e seja o que Deus quiser". É uma resposta um pouco animal, porque, afinal, existe a miséria, a desigualdade. Mas é o que é importante.


FOLHA - Por isso o senhor se casou aos 99 anos?

NIEMEYER - É exatamente por isso. Pronto. Acabou a entrevista.

terça-feira, 26 de junho de 2007

O barulho que pensa

O título é bastante sugestivo, uma homenagem à banda Kraftwerk: "Musik Non Stop". A descrição, um toque de sensibilidade: "impressões sobre expressões do barulho que pensa". Apreciador apaixonado de música eletrônica e rock, Debson Luís criou, há pouco tempo, um interessante blog para compartilhar opiniões sobre clipes musicais. Certamente quem gosta de Depeche Mode, Peter Gabriel, Devo, Seabound, entre outros, se tornará, como eu, um leitor assíduo deste novo blog com que Debson nos brindou...

sábado, 16 de junho de 2007

Maria Antonieta e o processo da revolução


Faz mais ou menos 45 dias assisti, em S. Carlos (SP), ao filme "Maria Antonieta", dirigido por Sofia Coppola. Foi o que pensou, a diretora é mesmo um rebento de Francis Ford Coppola e, inclusive, atuou em "O Poderoso Chefão III" como filha de Michael Corleone, papel que os críticos da época consideraram demasiado importante para uma atriz pouco expressiva. É verdade que, como atriz, Sofia Coppola ainda estava verde, tímida, mas é preciso descontar o afeto paterno. O que importa é que Sofia abandonou os palcos e resolveu trabalhar do lado de trás das câmeras, tal como o pai. E, em matéria de direção de cinema, Sofia dispensa a condescendência da crítica.

Terceiro filme da sua carreira, "Maria Antonieta" é um longa-metragem rigoroso, bem desenvolvido e inteligente. Exige do telespectador conhecimento do período em que se desenrola a vida da princesa austríaca que se tornaria rainha da França: o reinado de Luis XVI, às vésperas da Revolução de 1789. O figurino é realmente digno de nota, reflete bem a suntuosidade e as rígidas regras de etiqueta do Antigo Regime. A estética do filme foi particularmente favorecida pelas gravações no Palácio de Versalhes e, inclusive, algumas cenas foram gravadas no famoso Salão dos Espelhos. De todo modo, os franceses não perdoaram o pequeníssimo detalhe de o filme sobre uma das suas mais conhecidas rainhas ter sido rodado em... inglês. E como eles são orgulhosos da sua langue française! Foi motivo suficiente para vaias e assobios ao final da projeção do filme no Festival de Cannes.

Em grandes traços, o longa-metragem retrata a trajetória de Maria Antonieta desde sua partida de Viena (a cerimônia de trocas de indumentárias na fronteira é curiosa...), após acordo diplomático entre a coroa francesa e a austríaca, até a saída da família real de Paris, durante o processo da revolução.

Interessante que é justamente a partir deste ponto que começa a narrativa de outro filme, na verdade, uma grande obra-prima do neo-realismo italiano, “Casanova e a Revolução” (La Nuit de Varennes), do diretor Ettore Scola. As questões envolvidas na trama deste filme são maravilhosas: o Antigo Regime e seus costumes, representado alegoricamente por Casanova (interpretado por Marcelo Mastroianni), o liberalismo da burguesia ascendente, defendido por Thomas Paine, e o observador de toda a confusão da época, encarnado pela figura do escritor Restif de la Bretonne. Scola fez duas versões finais para o filme, uma para os telespectadores do mundo inteiro, e outra especialmente para os italianos. Ambas são impressionantes, sobretudo aquela em que o personagem de Restif de la Bretonne faz reflexão, em livro da época, sobre a natureza das revoluções e estabelece um fictício diálogo com o futuro, justamente com o mundo de 1989. É de encabular a profecia feita pelo escritor...

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Macondo está em toda parte


"Os sete anos que passei registrando estas imagens foram uma viagem a sete séculos de história. No ritmo lento e moroso que marca o tempo da região, assisti o desenrolar dos séculos, trazendo diferentes culturas, de crenças, provações e sofrimentos tão parecidos. Das areias ardentes do nordeste brasileiro às montanhas do Chile, Bolívia, Peru, Equador, Guatemala e México, convivi com a universalidade deste mundo à parte".

"Em vista da profunda pobreza, as igrejas da região de Oaxaca conceberam um serviço criativo: o aluguel de caixões para o velório e o cortejo dos mortos. Ao ser enterrado, o corpo é retirado do caixão, que assim será reutilizado infinitamente". -- Sebastião Salgado

Uma nova "paz armada"?

Carta Capital desta semana traz artigo de Antonio Luiz M. C. Costa sobre as tensões internacionais causadas por questões candentes, tais como: o aquecimento global; os riscos de tráfico nuclear e terrorismo (particularmente agravados pelas ambições nucleares de Irã e Coréia do Norte); o problema estratégico no leste europeu envolvendo a Rússia e os EUA; o unilateralismo da política externa de George W. Bush; e a crescente demanda mundial por recursos energéticos (o que configura nova geopolítica mundial do petróleo). De fato, a resolução destas questões exige a conformação de uma governança global efetiva capaz de garantir a acomodação de interesses nem sempre coincidentes.
O articulista encerra o artigo em tom realista/pessimista, evocando o contexto da "paz armada" que precedeu as grandes guerras do século XX:
"O mundo nunca precisou tanto de alguma espécie de governança global – e o G-8 nunca esteve tão distante do consenso necessário para formular uma proposta, quanto mais para torná-la aceitável aos novos poderes emergentes. Os EUA, a Rússia, a Europa e os novos países industrializados formam blocos de interesses aparentemente inconciliáveis: um busca hegemonia absoluta em todos os aspectos, o segundo tenta controlar a oferta da energia, o terceiro insiste em um status quo que já não consegue defender e o quarto em conquistar seu lugar ao sol. É uma receita não só para ressuscitar a Guerra Fria como para aquecê-la de maneira tão perigosa quanto ocorreu com a “paz armada” que antecedeu as guerras mundiais".

domingo, 10 de junho de 2007

Os fantasmas da Guerra Fria

Muitos temem os fantasmas da Guerra Fria. E não é para menos. O terror atômico que acompanhou a disputa entre as superpotências pela hegemonia mundial levou ao paroxismo de tornar uma guerra entre ambas impossível. Por razões óbvias. A recente ameaça do presidente russo, Vladimir Putin, de apontar mísseis para a Europa, caso os EUA não abortem o plano de construir um escudo antimíssil na Europa central, fez alguns analistas evocar os tempos da União Soviética. É exagero, certamente. Analisar os fatos recentes da política internacional com as lentes do período bipolar é incorrer em anacronismo. A geometria do poder mundial foi profundamente alterada ao longo dos últimos 15 anos. E a Rússia de hoje não possui a mesma projeção da falecida URSS.

Além disso, a política externa russa ainda não está claramente definida. Desde o fim da Guerra Fria, é ambígua e depende da tensão permanente no interior do Kremlin entre "ocidentalistas" e "eurasianistas". Além das visões de mundo presentes nos órgãos do Estado, há condicionalidades geopolíticas que explicam a atuação externa da Rússia atualmente. E Putin está plenamente consciente delas. No plano econômico, atenção deve ser prestada à geopolítica do petróleo na Ásia Central, acirrada pela demanda energética crescente da China, da Índia, do Japão, da UE e, é claro, dos EUA. No plano estratégico-militar, a presença de bases militares no Leste Europeu, particularmente na Polônia e na República Checa, é motivo de preocupação para as forças armadas russas e tende a colocar em questão os tratados firmados entre OTAN e Rússia. Há, em resumo, razões ideológicas, econômicas e estratégico-militares que informam a orientação da política externa de Putin.

Artigo publicado ontem na Folha de S. Paulo menciona quais são as "forças profundas" que estão por trás da política externa atual do governo Putin. O articulista enumera três fatores essenciais que orientam a postura do Kremlin em face do Ocidente: o fator estratégico no leste europeu; o ressentimento russo com relação à guerra de Kosovo, em 1998; a reclamação por maior participação nos assuntos internacionais; e questões de ordem doméstica.

A nacionalidade do pensamento e o estrangeirismo

A língua constitui, ao mesmo tempo, instrumento de comunicação humana e expressão da nacionalidade. Como todo elemento cultural, ela acompanha as mudanças históricas e sociais, sofrendo, por isso, influência de toda ordem. O intercâmbio lingüístico, que o contato cultural cada vez maior entre os povos proporciona, deve ser cultivado e promovido, sem deixar de reconhecer, contudo, que ele pode ocorrer, às vezes, de forma indesejada, dando espaço ao que ficou conhecido como estrangeirismo.

A linguagem faz parte da condição humana. Por causa da sua capacidade de mediação simbólica, pode-se dizer que ela se encontra na origem das sociedades, constituindo, junto com as crenças, os costumes e as tradições, o acervo cultural de um povo. Não há país que não tenha na forma de se expressar uma das fontes de sua identidade. Além de servir como meio de comunicação, os idiomas particularizam as nações, distinguem-nos de tal modo que podemos separar com facilidade os habitantes de Paris daqueles que nasceram em Moscou. Não raro, tornam-se motivo de inflamadas pregações nacionalistas. A propósito da importância do idioma pátrio, o escritor romântico oitocentista José de Alencar afirmava que “a língua é a nacionalidade do pensamento como a pátria é a nacionalidade do povo”.

Reconhecer, no entanto, que o idioma reflete a identidade popular não deve levar a posturas extremas, que identifiquem no estrangeiro aquilo que precisa ser evitado a qualquer custo. O empréstimo de novas palavras tomado de outros idiomas é prova da natureza dinâmica das línguas, que antes se enriquecem do que se degeneram pelo contato entre si. Tal processo, ao contrário do que sugerem os puristas, não ocorre de maneira passiva e automática, pois é na reconstrução que muitas palavras estrangeiras são incorporadas ao vernáculo nacional. Como ilustração: a palavra “forró”, usada para designar um tipo de festa popular no Brasil, deriva do inglês “for all”, evento aberto ao público, promovido na base aérea norte-americana de Natal, durante a Segunda Guerra.

Se, por um lado, o contato com outras línguas não configura ameaça ao português, por outro, os modismos e a afetação no uso de outros idiomas não devem ser vistos com bons olhos. Com o processo de globalização a que se assistiu nas últimas décadas, muitas expressões estrangeiras passaram a ser empregadas quando, na verdade, existe sua correspondente no idioma pátrio. Especialmente no comércio, seus usuários parecem querer exibir certo cosmopolitismo com inscrições do tipo “delivery” e com logotipos que não devem encontrar entendimento geral como “Panetteria Petite Gateau”! Não é por outro motivo que, na França, a xenofobia oficial ao estrangeirismo chegou a ser objeto de legislação que determina a passagem para o francês de palavras e expressões provindas de outros países. Talvez o caso mais conhecido seja o do “savoir faire”, versão francesa do “know-how”. Na Espanha, por sua vez, nomes estrangeiros são “nacionalizados”, evitando, assim, a sua pronúncia como na língua de origem. Lá, Karl Marx é conhecido como Carlos Marx.

Embora a unidade lingüística deva ser preservada, cumpre assinalar, não obstante, que nenhuma língua é estática e imutável, pois, se assim fosse, nem o Português, a última flor do Lácio, teria surgido. Ao contrário, ela acompanha o destino do povo que a fala. Basta ler Os Sermões, do padre Antônio Vieira, e observar os regionalismos para atestar que o português sofreu a influência do tempo e do lugar onde é praticada.

Isso não exclui, todavia, a pertinência de políticas públicas que visem à valorização da cultura brasileira, em geral, e do nosso idioma, em particular. Nesse sentido, programas de ensino e difusão da língua portuguesa no exterior, como vertente da nossa inserção internacional, podem ser incentivados em parceria com os países que compõem a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Além disso, e acima de tudo, em um mundo cada vez mais interdependente, a educação torna-se condição fundamental para a afirmação de nossa herança cultural, tornando-nos mais conscientes do valor do português como patrimônio nacional.

Esquerda ou Direita?

Li hoje texto esclarecedor, escrito por Débson Luís, sobre a origem e a trajetória das vertentes de esquerda e de direita na política. Intitulado "Esquerda e direita: fundamentos básicos", o artigo dissolve algumas dúvidas recorrentes que confundem mesmo os mais iniciados no reino da ciência política. Aliás, pode existir uma direita oposicionista e uma esquerda governista?


ESQUERDA E DIREITA: ALGUNS FUNDAMENTOS BÁSICOS
29 de abril de 2007

Mais uma vez, estava eu a passear pelas comunidades do Orkut quando me deparei com uma dúvida de um internauta, a qual revelava uma enorme confusão. O sujeito em questão entende que "esquerda" e "oposição" são a mesma coisa. Portanto, para ele, é inconcebível que um partido de esquerda ocupe o poder, já que cabe à esquerda somente exercer o papel de oposição (ou algo parecido).
O termo "esquerda", em primeiro lugar, não é sinônimo de "oposição". O fundamento nasceu, na verdade, no período da Revolução Francesa, mas não no sentido de que os ditos "de esquerda" da época representassem oposição ao governo estabelecido. O conceito foi concebido pelo fato dos Jacobinos (a pequena e média burguesia, que sustentavam a radicalização do processo revolucionário) ocuparem a ala esquerda do parlamento francês, enquanto a ala direita do mesmo era ocupada, em maioria, pelos Girondinos (a alta burguesia, que pretendia implementar reformas mais moderadas). Em outras palavras, os Jacobinos (à esquerda) defendiam propostas mais radicais, tendo em vista o atendimento dos interesses das camadas mais populares, ao passo que os Girondinos (à direita) eram mais conservadores e lutavam fundamentalmente pelos interesses de sua própria classe.A partir daí, toda ação política de caráter mais popular, que visasse beneficiar as classes menos abastadas, recebeu o rótulo de "esquerda". Já as ações de caráter mais conservadoras e elitistas, o de "direita".Na segunda metade do século XIX, surgiram os movimentos operários, orientados pelas idéias socialistas/comunistas e anarquistas ao mesmo tempo em que o movimento liberal ganhava força. Os primeiros preconizavam a "revolução do proletariado" e a conseqüente destruição do capitalismo e o fim do Estado (1); o segundo pretendia a "manutenção do capitalismo" e uma menor interferência estatal nos mais diversos aspectos da vida em sociedade (especialmente nas relações econômicas). Logo, os partidos que se orientavam, principalmente, segundo as idéias socialistas/comunistas, por terem caráter mais popular, assumiram o rótulo de "esquerda", assim como os partidos fundados nos ideais do liberalismo, por sua ligação com a idéia de "reformar" o Estado e "conservar" o capitalismo, ganharam o rótulo de "direita".
Claro que esses conceitos evoluíram e se transformaram ao longo do século XX, mas o que distingue atualmente "esquerda" de "direita" seria, basicamente, o seguinte: aqueles que defendem a idéia de que só é possível resolver os problemas sociais através da atuação do Estado, enfim, aqueles que pretendem promover a "igualdade social" (ou, ao menos, reduzir substancialmente a desigualdade) utilizando como ferramenta o Estado (seja através de reformas no sistema capitalista ou através da implementação de um programa de caráter socialista) são considerados de "esquerda". E aqueles acreditam que com a menor interferência do Estado nas relações em sociedade, e através da livre iniciativa, os problemas sociais se resolveriam “naturalmente” são apontados como sendo de "direita".
Há, ainda, outros dois componentes muito significativos presentes em ambas as linhas (e que abrangem o pensamento como um todo ― e não apenas o aspecto político e/ou econômico): conservadorismo e progressismo. De forma geral, a direita costuma ser bem mais conservadora que a esquerda (proporcionalmente, mais progressista), o que não significa, entretanto, que não haja progressistas à direita bem como conservadores à esquerda. Para citar dois exemplos: à direita, quem segue à risca todos os preceitos do liberalismo é, geralmente, progressista, ao passo que movimentos esquerdistas ligados à Igreja tendem a adotar uma postura mais conservadora (basta observar questões como a legalização do aborto ou a adoção de crianças por casais homossexuais).Regimes democráticos, como o brasileiro, geralmente têm a característica de "rotatividade de poder", ou seja, ora partidos de esquerda ocupam o comando do Estado, ora os de direita. Isso depende, evidentemente, da vontade popular, expressa nas eleições. Quando um está no poder, o outro faz oposição. Mas nem sempre "situação" e "oposição" obedecem a essa lógica (ao menos aqui, no Brasil). Isso depende muito de acordos que são costurados, além de pequenas diferenças ideológicas e/ou programáticas dentro da própria linha de pensamento. Por exemplo: em tese, o PSDB, que é o principal partido de oposição atualmente, é um partido de esquerda, visto que "social-democracia" é uma vertente de caráter esquerdista, enquanto que o ex-PL (atual PR - Partido Republicano) é um partido de direita e forma a base de apoio ao governo do PT (tradicionalmente quisto como sendo de esquerda). Parece contraditório, não? De fato é. E isso denuncia quão superficial é a postura ideológica/programática de nossos partidos.
A única maneira de haver mais seriedade, em função de um aprofundamento maior, é por meio de uma extensa reforma política. Enquanto ela não vier, será este circo que aí está.
1 - É interessante observar que a necessidade de dar cabo do Estado é deixada de lado pela esquerda no decorrer do século XX. Em parte, isso se deve, provavelmente, à experiência do chamado "socialismo real", que não conseguiu levar adiante a proposta de Marx: a de implementar uma sociedade sem Estado (comunista, de fato). Além disso, após o desmoronamento do bloco soviético, em 1991, a social-democracia (que sempre propôs a reforma do capitalismo a fim de promover justiça social) ganhou novo fôlego e, para esta vertente, o papel do Estado nessa transformação é fundamental.


(Publicado em http://br.manifesto.zip.net/)

O exercício da hegemonia mundial

Em "O Paradoxo do Poder Americano", obra dedicada ao estudo das relações internacionais no pós-Guerra Fria, o internacionalista norte-americano Joseph Nye elenca as fontes principais de poder na Era da informação. Neste livro, é evidente a preocupação de Nye com a manutenção da hegemonia americana no sistema internacional. Há duas fontes principais de poder por meio dos quais a potência norte-americana pode garantir a supremacia: o poder "hard"e o "soft". O primeiro é o poder coercitivo das armas; o segundo, o poder institucional, ideológico e cultural. No fundo, o que Nye quer dizer é que a hegemonia americana deve ser exercida com base naquela formulação de Gramsci: hegemonia é o resultado do uso da força mais a imposição de uma "visão de mundo".

Artigo publicado hoje no Jornal do Brasil, intitulado
"A desastrada política externa dos EUA", discute a dificuldade do governo George W. Bush em exercer a supremacia mundial. Nessa matéria, creio que os Democratas são, por assim dizer, menos piores...

Homenagem merecida a quem fez muito pela literatura brasileira

Celebramos em 2007 o centenário de nascimento de Paulo Rónai, húngaro de nascimento que durante a II Guerra foi obrigado a deixar seu torrão natal por causa da avalanche nazista. Quem aprecia contos provavelmente já se deparou com a célebre coleção organizada por Rónai e Aurélio Buarque de Holanda, "Mar de Histórias: Antologia do Conto Mundial". Ontem o Jornal do Brasil publicou artigo do poeta e diplomata Felipe Fortuna sobre a trajetória intelectual de Rónai. Segue abaixo o artigo:
Paulo Rónai: pois é
Felipe Fortuna (publicado no Jornal do Brasil, Idéias, 9.6.2007)
Aprendo muito com Paulo Rónai (1907-1992), exemplo de humanista e de trabalhador intelectual cuja biografia revela várias vidas: a primeira, na Hungria, até 1939, quando a fúria nazista o forçou a deixar seu país; a segunda, no Brasil, país que elegeu a partir do amor pelo idioma e onde consolidou sua obra de tradutor, ensaísta, professor, gramático, lingüista e, à falta de melhor termo, divulgador literário. Essas vidas numerosas ainda se multiplicaram nas línguas que Paulo Rónai dominou com alto sentido cultural – não apenas o húngaro e o português, mas o francês, o italiano, o espanhol, o inglês, o alemão e o latim. Para cada uma dessas línguas misturadas às vidas, o mestre deixou não menos do que um ensaio ou um livro importante, e por vezes – como na coordenação da tradução integral para o português d’A Comédia Humana, de Honoré de Balzac – muitos volumes que se transformaram em paradigma para a edição de literatura estrangeira no Brasil.Quando comecei a ler Paulo Rónai, ainda na adolescência, logo percebi que o seu trabalho também trazia valores éticos e lições profissionais que o escritor comunicava com humor e até mesmo inesperada alegria. Num texto intitulado “De Quantas Línguas Precisa o Homem?”, ele escreve sobre as “maiores satisfações” experimentadas quando leu o primeiro livro em alemão, quando deu o primeiro telefonema em francês, quando ganhou o primeiro dinheiro em italiano. O prazer é referência constante na descrição do conhecimento profundo que tem das línguas. Em muitas análises literárias, como as de Encontros com o Brasil (1958), usa palavras como “emoção” e “frêmito” para comunicar seu deleite com a poesia e a prosa que lhe transmitem a dimensão da vida. Desde então, passei a imaginar Paulo Rónai como um poliglota cuja missão pareceu estar perigosamente esticada entre duas posições: uma, a do alemão Gottfried Herder, de que “ninguém pensa além do idioma”; outra, a de Guimarães Rosa: “traduzir é conviver”. Como esta frase é a que abre o livro Escola de Tradutores (1952), concluo que Paulo Rónai enfrentou o intraduzível – e conseguiu transmitir palavras, livros e idéias.Hid-ember (homem-ponte, na sua língua nativa), o tradutor fez façanhas. Foi dele o primeiro livro brasileiro traduzido para o húngaro, Brazilia Üzen (Mensagem do Brasil), uma antologia da poesia moderna brasileira, publicado no fatídico 1939. Para o húngaro também traduziu uma antologia de dois mil anos de poesia latina. Traduziu para o francês as carioquíssimas Memórias de um Sargento de Milícia (1854), de Manuel Antônio de Almeida, havendo tido o cuidado de percorrer “os velhos bairros e morros do Rio, hoje ocupados por favelas, onde o afilhado do barbeiro fizera das suas até virar sargento”, como conta em A Tradução Vivida (1975). Do húngaro trouxe para nós, entre outros títulos, Os Meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnár, originalmente publicado no ano de nascimento do seu tradutor. A longa bibliografia ainda inclui obras do alemão, do latim e do francês para o português do Brasil, todas realizadas segundo o mesmo princípio: “a tradução, que força uma língua a dobrar-se, acompanhando as curvas de um pensamento estrangeiro, é, mais ou menos, o único meio de comunhão espiritual requintada entre as nações.”Foi também graças à sintonia de sentimentos de pessoas estrangeiras que Paulo Rónai conseguiu enraizar-se no Brasil. Uma dessas pessoas foi o poeta e diplomata Ribeiro Couto, que trabalhava na Holanda à época em que o tradutor precisava deixar a Europa em guerra. “Primeiro amigo brasileiro que tive” e “principal responsável pela minha vida para o Brasil”, Ribeiro Couto foi o informante pioneiro da literatura e da vida literária daquele país distante. A outra pessoa em quem Paulo Rónai encontrou afinidades foi Aurélio Buarque de Holanda, também tradutor. Juntos, e ao longo de mais de trinta anos, produziram uma fascinante antologia do conto mundial, Mar de Histórias, a partir de 1945, atualmente editada em dez volumes.Gosto muito do tom anedótico que encontro nos relatos de Paulo Rónai, especialmente em Como Aprendi Português, e Outras Aventuras (1956). Esse livro é um modelo de memorialismo cultural, o testemunho de um intelectual que, pela via do estudo e da perseverança, encontrou no domínio das línguas uma experiência dos sentidos semelhante ao êxtase. Essas aventuras intelectuais de Paulo Rónai estão repletas, como notei, de uma alegria vital, mas também de um bem-sucedido quixotismo que levou o tradutor a atacar de frente as ciladas, as ambigüidades, os provérbios e, por fim, as ilusões de um texto estrangeiro. Talvez por admirar as conquistas abstratas do tradutor, tenha predileção por Babel & Antibabel (1970), a série de estudos que ele dedicou ao problema da língua universal.Pois uma das utopias humanas, conforme se lê na Bíblia, é a busca de uma língua a ser escrita, falada e entendida por todos. Paulo Rónai analisa os esforços realizados para o estabelecimento de uma língua artificial – entre as quais o esperanto, o panamane, o volapuque, o romanid – que resolveria quaisquer dificuldades no contato com pessoas e culturas estrangeiras.Assim como a famosa torre, as tentativas desmoronam e jamais alcançam seus objetivos. A marcha insensata de muitos sábios permite que o tradutor classifique de “uma tragicomédia lingüística” qualquer plano milagroso da língua universal. E ele conclui que “a multiplicidade das línguas é ainda um dos baluartes da liberdade” que nos permite gozar “os efeitos abençoados da confusão de Babel”.Como a idéia de celebridade está restrita à televisão e aos imbecis que se tornam conhecidos nos reality shows, celebro sozinho as várias vidas do grande e centenário Paulo Rónai, e levanto uma taça do amargo aperitivo húngaro Unicum ao magíster e mago magiar da tradução.

sábado, 9 de junho de 2007

Cem Anos de Solidão e O Poderoso Chefão: duas sagas inesquecíveis




"Cem Anos de Solidão", de Gabriel Garcia Marquez, foi um dos melhores livros que já li. Sem dúvida. É extraordinária a história da família Buendía. E Macondo é inesquecível. Trata-se de alegoria da história da América Latina, dominada pelas sangrentas lutas entre liberais e conservadores e pelo isolamento e esquecimento. O contato de Macondo com o exterior se restringe às visitas irregulares dos ciganos, portadores das inovações tecnológicas criadas ao redor do mundo (ver artigo "Realidade deu cores à fantástica Macondo").
Acabei de fazer o que é impossível: resumir um turbilhão de histórias fantásticas que encerram "Cem Anos de Solidão". É impossível, eu sei. Mas não foi sem propósito. Quero comentar apenas um trecho da obra que me despertou reflexão sobre tema crucial: o poder e a simplicidade. Talvez seja metafísico demais. Reconheço. Peço um pouco de paciência. De todo modo, o excerto é o seguinte:
“O Coronel Aureliano Buendía arranhou durante muitas horas, tentando rompê-la, a dura casca da sua solidão. Os seus únicos momentos felizes, desde a tarde remota em que seu pai o levara para conhecer o gelo, haviam transcorrido na oficina de ourivesaria, onde passava o tempo armando peixinhos de ouro. Tivera que promover 32 guerras, e tivera que violar todos os seus pactos com a morte e fuçar como um porco na estrumeira da glória, para descobrir com quase quarenta anos de atraso os privilégios da simplicidade”.
Outra história que me impressionou bastante foi a saga da família Corleone na trilogia de "O Poderoso Chefão". Dirigido por Francis Ford Coppola e baseado em romance do escritor Mario Puzo, a trilogia constitui a melhor anatomia do poder que já vi nas telas do cinema. Poucos discordam dessa avaliação. No filme, o poder se manifesta em tudo: nos gestos, na indumentária, no favor, na obediência, nas rivalidades e na violência. A trajetória de Michael Corleone (representado magistralmente por Al Pacino) é espetacular. E igualmente trágica.
Justamente aqui quero traçar o paralelo entre a vida do Coronel Aureliano Buendía, líder do Partido Liberal que enfrentou uma série de sangrentas batalhas sem saber plenamente qual a sua causa, e Michael Corleone, detentor de enorme poder construído às expensas daquilo que mais valorizava: a família. Foi trágico porque Michael estava consciente das agruras do poder, de que ele tentou, de certo modo, se livrar a fim de reconciliar-se consigo mesmo. A seqüência final de "O Poderoso Chefão III", realizada ao som da ópera Cavalleria Rusticana, explicita as conseqüências trazidas pela máfia. E a simplicidade da morte talvez tenha sido o único privilégio de que Michael gozou plenamente em sua vida...

O sentimento de nacionalidade e o exercício de alteridade


Definir a nacionalidade e o seu lugar no mundo constitui, ainda hoje, tema crucial no pensamento social brasileiro. Sua abordagem exige reflexão sobre o conjunto de características culturais que conformam um sentimento de pertencimento e de identidade. Exige resposta à seguinte questão: “o que nos torna uma nação?”. A resposta é aparentemente simples – a cultural nacional. Contudo, distinguir os traços essenciais que compõem o perfil de uma nação não é suficiente para explicar o desenvolvimento de uma consciência de nacionalidade: o contato e a convivência permanentes com outras culturas são, para isso, condições indispensáveis.

Em primeiro lugar, pode-se dizer que a identidade nacional, como construção simbólica coletiva, reflete a herança histórica e cultural de um povo. O passado, a geografia, as tradições e os costumes compreendem o acervo cultural por meio do qual uma população se identifica e se particulariza perante outras nações. Compreendem, por assim dizer, a alma de um povo. Nesse sentido, todo país encontra em sua língua, em suas práticas culturais e – igualmente – em seus dilemas sociais, fontes de sua identidade. Dizer que somos brasileiros significa que compartilhamos um “caráter” nacional, legado de uma formação social específica, que se traduz em nossa maneira de organizar a vida social e de encarar o mundo.

Se, por um lado, é verdade que a identidade de uma nação repousa sobre seu acervo cultural, por outro, a tomada de consciência pela própria população se desenvolve no contato e intercâmbio permanentes com o “outro”, o diferente, o estrangeiro. Ora, definir os elementos que particularizam um povo implica necessariamente reconhecer suas diferenças em relação às outras nacionalidades; reconhecer, inclusive, seus vícios e suas carências. Trata-se, em outras palavras, de um exercício de alteridade, uma vez que da oposição entre o “eu” e o “outro” decorrem a percepção e a consciência de uma identidade singular. Nesse sentido, o “ser brasileiro” requer o seu oposto, o “não ser brasileiro”.

O Brasil é hoje uma das sociedades mais diversas do mundo. A pluralidade étnica e cultural compôs historicamente o perfil da nossa personalidade nacional. É verdade, porém, que nem sempre fomos orgulhosos disso. Na segunda metade do século XIX, influenciados pelo positivismo e pelo evolucionismo europeus, pensadores brasileiros, como Sílvio Romero e Nina Rodrigues, fizeram avaliações negativas do “ser brasileiro”, “atrasado”, mestiço e tropical. A sociedade brasileira era, nessa perspectiva, o exato oposto da européia, modelo ideal de civilização a ser imitado. Não é por outro motivo que, nos círculos políticos e intelectuais brasileiros, terminaria por ganhar força as teses de “embranquecimento” da população, segundo as quais apenas a imigração de brancos europeus seria capaz de “civilizar” o País. Em outras palavras, a imagem do Brasil era distorcida pelo anseio de parte de sua elite de se identificar com o mundo europeu e de por ele ser aprovado. A identidade nacional formava-se de fora para dentro.

Em meados de 1930, no contexto do movimento modernista, Gilberto Freyre sugere, entretanto, nova perspectiva da identidade nacional. Em Casa Grande & Senzala, Freyre descreve o processo de formação da sociedade brasileira, valorizando a miscigenação étnica e cultural protagonizada pelo colonizador português. O mestiço tornava-se, pela primeira vez, motivo de orgulho nacional. Mas a imagem real do País ainda não estava completa. Estava, por assim dizer, desfocado por uma ideologia -- a de que o Brasil vivia uma espécie de “democracia racial”. Como muitos autores viriam a denunciar posteriormente, dos quais se destaca Florestan Fernandes, essa ideologia encobrira problemas sociais, tais como a discriminação racial e a marginalização socioeconômica, que afetavam, e continuam a afetar, uma parcela significativa da nossa população.

O encontro do povo brasileiro consigo mesmo constitui um desafio permanente. Quem somos? O que aspiramos? A afirmação do Brasil no mundo depende da forma como respondemos a essas questões. Depende igualmente da construção de uma sociedade menos injusta, capaz de mitigar as enormes desigualdades sociais e regionais. Depende, por fim, de nossa inserção madura e soberana no cenário internacional.

Olga: de avó para neta

Olga não é nome comum. De origem russa, significa santa e sagrada. Denota mulher de caráter forte e personalidade marcante, que domina as situações e não o inverso. O nome da minha irmã explica em parte sua personalidade. Era também como se chamava minha avó paterna -- mulher de convicções inabaláveis que fazia jus ao nome que carregava. Curiosamente Olga não era o nome original da minha avó; foi ela quem o escolheu, depois de fugir da fazenda de seu pai, no norte de Minas Gerais, para despistar a família. Não queria casar com quem não amava e, como quem domina a situação, fugiu para sempre. Minha irmã carrega o peso do nome. É herança do destino. Faz parte do seu sangue. Quem a conhece desconfia: Olga não veio para assistir aos episódios da vida, para ver a marcha passar; ao contrário, veio para deixar sua marca, para mudar o rumo das coisas...

Democracia e República: convergências e contradições


Regimes políticos, assim como formas de governo, compreendem dimensões fundamentais do Estado-nação. Deles dependem, em larga medida, a convivência política e o bem-estar da sociedade como um todo. Ao longo da história, os sistemas políticos por meio dos quais as sociedades se organizaram assumiram várias formas, entre as quais se destacam a monarquia, a oligarquia e o despotismo. No mundo contemporâneo, a democracia e a república, ambas invenções da civilização greco-romana da Antiguidade, ocupam lugar de destaque no ideário político ocidental, a tal ponto que a legitimidade dos governos atuais costuma ser avaliada por sua identificação ou não com os princípios democráticos e republicanos. Embora freqüentemente caminhem lado a lado, como se uma dependesse da outra, deve-se assinalar que a democracia e a república encerram idéias e valores políticos diferentes, por vezes contraditórios.

Em A Era das Revoluções, Eric Hobsbawn afirma que a formação do universo político contemporâneo foi inaugurada pela Era das Luzes, quando as idéias de liberdade e igualdade, esposadas pelos filósofos iluministas, triunfaram sobre os princípios que moldaram as instituições do Antigo Regime. Após a queda da Bastilha, em 1789, sob a inspiração das noções de “soberania popular” e de “vontade geral”, ambas divulgadas pela obra de J. J. Rousseau, o povo entraria no palco político, exigindo participação efetiva nos assuntos públicos. Ao mesmo tempo, os privilégios estamentais eram abolidos, e o autoritarismo monárquico abria espaço para a cidadania e a democracia. O desejo do povo francês de mudanças sociais profundas, traduzido no decorrer do processo revolucionário pelo radicalismo dos jacobinos, causou enorme impressão na elite européia do século XIX. Tanto mais que, nos países ocidentais, a democracia representativa, versão moderna da democracia direta dos antigos, acabaria por prevalecer como regime político apenas na segunda metade do século XX. Temia-se a atuação política do povo.

Em 1776, após longa luta por independência, os Estados Unidos consagram, em sua Constituição, o ideário republicano, enraizado na experiência romana da Antiguidade. Menos de vinte anos depois, em 1792, os revolucionários franceses substituiriam o regime monárquico pelo republicano. Da mesma forma, os valores do Antigo regime, representados pelo sentimento de honra da nobreza, cediam lugar à virtude republicana, como ética política fundamental. J. Louis David, pintor oficial de Napoleão, talvez tenha sido quem melhor exprimiu os valores republicanos por meio de sua pintura neoclássica: quadros como “O Juramento dos Horácios” e “Os Lictores devolvendo a Brutus os corpos dos seus filhos” enfatizam a tradição romana de sacrifício dos interesses particulares – e dos sentimentos afetivos --em benefício da res publica, do bem comum. Nesse sentido, ser republicano implica um sentimento íntimo de dever para com a coisa pública.

Enquanto a democracia traz consigo o desejo de exercício do poder e, acima de tudo, a aspiração popular de mudança social, a República afirma a virtude, a devoção do indivíduo pelo bem comum. Ambos os regimes parecem refletir disposições diferentes, ou mesmo contraditórias, de participação política: “o desejo de ter mais” e a abnegação. É significativo que o exercício pleno da cidadania, pressuposto da democracia e dever republicano, decorre da ponderação dessas disposições contraditórias. Se, por um lado, “o desejo de ter mais” impulsiona a luta social no sentido de ampliação dos direitos humanos, mitigando, como conseqüência, as disparidades socioeconômicas, por outro, a abnegação leva à consciência de que a participação política e o respeito pela coisa pública constituem deveres permanentes.

A experiência política brasileira não foi capaz de desenvolver uma nação democrática e republicana. Pode-se dizer que a cidadania no Brasil é incompleta e restrita. Mais do que isso: ela é exercida no interior de um sistema político dual, composto por integrados e marginalizados, por cidadãos e simples eleitores. Na origem desse sistema encontram-se persistentes problemas socioeconômicos, decorrentes da concentração de renda e da herança escravocrata. À situação de marginalização social a qual é relegada parcela significativa da sociedade corresponde uma população pobre e desinformada, socialmente dependente e politicamente manipulável.

O povo assistiu “bestializado” à Proclamação da República (1889), afirmou desapontado Aristides Lobo. O jornalista republicano havia identificado o pecado original do movimento político que pôs fim à monarquia: não cabe ao povo papel de espectador na República. Ao contrário, deve ele ser protagonista dos acontecimentos políticos, atores participativos da história.

A modernidade brasileira e a mão experimentada do estrangeiro

O Brasil aspira à modernidade. Desde a independência política, em 1822, quando foram lançadas as bases para a formação do Estado brasileiro, afirmar-se, no cenário internacional, como país moderno e soberano constitui um projeto permanente. Não foi por acaso que, ao longo do Império e mesmo da República, as instituições políticas nacionais conformaram-se com base nos valores e princípios do liberalismo ocidental. Vivemos hoje sob regime democrático e republicano. É verdade, contudo, que a formação social brasileira foi marcada pelo descompasso entre o sistema político-jurídico e as práticas sociais, como se as idéias estivessem, por assim dizer, "fora do lugar". Em face dessa incongruência, o diálogo maduro com o estrangeiro portador de experiência cultural diferente representa esforço capaz de conduzir à tomada de consciência dos obstáculos à modernização do País.
"Somos um outro Ocidente, mais pobre, mais problemático, mas não menos ocidente", afirmou certa vez José G. Merquior, assinalando a condição ambígua e incompleta da nossa sociedade, herdeira das instituições da modernidade, não obstante dominada pelo atraso. No que se refere à cultura política, pode-se dizer que, no Brasil, as relações entre o Estado e os indivíduos foram historicamente marcadas pela ausência de limites claros entre o espaço público e o privado. Trata-se de fenômeno social que remete aos fundamentos personalistas da formação nacional: o patrimonialismo. Em Raízes do Brasil, Sérgio B. Holanda afirma que a cultura política patrimonial decorre do tipo de sociedade legado pela colonização portuguesa: uma sociedade calcada em estrutura extremamente estratificada, formada basicamente por senhores, escravos e homens livres pobres. Nesse quadro social, em vez de representar a sociedade, o Estado acabou por se tornar uma espécie de extensão pública dos interesses privados da família patriarcal, regulado por relações sociais paternalistas baseadas no favor e na dependência.
Em excerto de A casa e a Rua, intitulado a "A questão da cidadania num universo relacional", Roberto DaMatta enfatiza a especificidade da noção de cidadania no Brasil, regida por privilégios e favores. Ao invés de assumir caráter universal e nivelador, baseado na concepção liberal de igualdade, a cidadania brasileira engendra práticas sociais que legitimam a desigualdade e promovem o tratamento diferenciado entre os indivíduos. Não existe entre nós, desse modo, o cidadão como sujeito de direitos e deveres, mas apenas o indivíduo como objeto de favores. Disso resulta a carência de credibilidade nas instituições políticas, condição indispensável para a formação de uma ordem pública moderna e democrática.
Diante da incoerência entre o sistema político vigente -- e suas idéias subjacentes – e a realidade socioeconômica, o olhar incomodado e a experiência do estrangeiro portador de cultura diversa podem contribuir, em certa medida, para a superação das acomodações políticas e sociais do País. Dois momentos históricos significativos em que o intercâmbio cultural com outras nações ajudou no desenvolvimento nacional foram a missão artística francesa, durante o Reinado de D. João VI, e a imigração de italianos e eslavos, na virada do século XX. Enquanto os artistas franceses, como J. B. Debret e Grandjean de Montigny, propiciaram o surgimento de uma tradição de artes plásticas e de arquitetura no Brasil; os trabalhadores italianos, provenientes de país com forte tradição sindicalista, e os eslavos, portadores de experiência industrial, favoreceram o processo de modernização da economia brasileira.
Apesar disso, em tempos de mundialização vertigionosa, os contatos culturais cada vez mais intensos entre as nações, proporcionados pelas novas tecnologias da informação e pelos meios de transporte, tem despertado, especialmente nos países desenvolvidos, sentimentos xenófobos em relação à influência do estrangeiro sobre a identidade nacional. Ora, não há motivos para temer o intercâmbio cultural: cada país tem condições de manter sua individualidade; pelo contraste que proporciona, o contato com países de tradições e costumes diferentes acaba por estimular a consciência nacional. Por meio dele, as contradições e antagonismo da sociedade são acentuados, contribuindo para sua resolução.
A abertura ao mundo, antes que evitada, deve ser encorajada. Em meados dos anos 1930, Sérgio Buarque propugnava como a "nossa revolução" a superação, lenta porém inexorável, da ordem colonial e patriarcal por meio da construção de uma sociedade urbana e industrial. Ainda hoje, esse projeto continua em aberto. Nesse sentido, a mão experimentada e a experiência acumulado do estrangeiro pode nos ajudar a alcançar a modernidade a que sempre aspiramos.